
Enquanto espera, uma senhora morena, aparentando 40 anos, lê a Folha Universal. Observo. Ela me olha friamente e logo ataca: “Os jovens de hoje precisam de Deus. Necessitam de um caminho. Você não acha?” Respondo positivamente com a cabeça. Ela abaixa o rosto e continua lendo. Logo a minha frente dois senhores conversam. É uma daquelas conversas que os jovens deveriam prestar atenção. Um deles, sempre que termina de contar um ‘causo’, afirma com muita ênfase: “Viu, mais é verdade mesmo, eu num tinha porquê menti”.
O sol vai subindo no horizonte. Enquanto isso a fila continua parada. Outro senhor, de cabelos brancos, vestindo uma calça boca larga, estilo anos 70, e uma camisa social surrada, se aproxima com duas caixas térmicas cheias de salgados. A fila grande e demorada é bom sinal para ele, só pra ele. Chega. Aconchega-se no único banco livre e apóia as caixas. Tira do bolso uma sacola cheia de moedas; outra sacola com guardanapos e ainda outra sacola com o pente e objetos pessoais. Logo as pessoas vão se aproximando. Na medida em que vende os lanches, a R$ 1,30 cada, o cheiro dos quitutes toma conta da fila e todos se curvam para saborear com os olhos, e alguns com a boca. O senhor exibe um sorriso constante, verdade que desfalcado por dois dentes na parte superior, mas mesmo assim constante e alegre.
A fila continua da mesma maneira: estática e sonolenta. Desde que cheguei, há cerca de 40 minutos, andei uns três passos para frente, não mais que isso. A monotonia é quebrada por um rapaz que passa ao lado da fila, de cabeça baixa e com alguém segurando suas mãos. Uma mulher vem apressada logo atrás, falando nervosamente ao celular. Os cochichos começam. Não consigo ouvir nenhum nitidamente. Só noto a expressão da senhora que ainda lê a Folha Universal. Ela fecha o semblante e faz um sinal negativo com a cabeça. Quando o rapaz retorna, dessa vez de frente para os que estão na fila, os olhares de reprovação são ainda maiores. Ele é um presidiário da Casa de Detenção da cidade. Para os que estão na fila, ele é apenas um marginal. Para o 'sistema', ele é apenas mais um número. Os senhores comentam entre si. “Se tivesse um lote pra carpir não tinha feito coisa errada e não taria nessa vida”, justifica um deles com feições orientais e mãos calejadas.
A fila não continua a mesma, agora é alguns metros mais extensa. O senhor dos salgados já não está mais lá. Vendeu todos os lanches que cabiam na caixa e foi até sua casa renovar o estoque. Alguns o aguardam ansiosamente. Já faz mais de uma hora que estou quase que no mesmo lugar, parado e observando toda aquela atmosfera confusa e interessante. Uma senhora conta a história de sua mãe. Ela já esteve lá, acompanhando a mãe, duas vezes, essa é a terceira. Indignada com a situação de demora e descaso, esbraveja e vai até à recepção. Volta de lá vermelha e logo berra: “Dois médicos não vieram hoje, não sabe se vai ser todo mundo atendido”. Os burburinhos crescem. Pessoas começam a chorar. Alguns dizer do dia de serviço perdido e outras do dinheiro gasto com a viagem. Para diminuir a tensão, um senhor fuma um daqueles cigarros de palha. Decido me retirar, afinal, até Ibaiti ainda são 90 quilômetros e algumas curvas. Antes disso fico imaginando como será o fim do dia de cada uma daquelas pessoas. Quem vai conseguir uma consulta de cinco minutos? Quem vai perder a viagem? O pior é ter a certeza de que amanhã aquela fila estará lá novamente, do mesmo jeito ou até maior. A única coisa que muda são as pessoas que a compõem. Porque o serviço público continua deficiente e cada vez pior.
Texto: Afonso Verner
Foto: Latuff (imagem meramente ilustrativa)
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