quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A vida nas filas

A fila é grande. Nela estão crianças, jovens, adultos e idosos. A grande maioria é de idosos. A manhã quente fica ainda mais cansativa nessa situação. Em pé, encostados no corrimão, os pacientes do Hospital de Olhos do Norte Pioneiro, em Jacarezinho, esperam pelo atendimento e, claro, por uma boa dose de sorte. Muitos estão ali desde às seis horas da manhã. Já são quase nove e a fila continua longa e demorada.

Enquanto espera, uma senhora morena, aparentando 40 anos, lê a Folha Universal. Observo. Ela me olha friamente e logo ataca: “Os jovens de hoje precisam de Deus. Necessitam de um caminho. Você não acha?” Respondo positivamente com a cabeça. Ela abaixa o rosto e continua lendo. Logo a minha frente dois senhores conversam. É uma daquelas conversas que os jovens deveriam prestar atenção. Um deles, sempre que termina de contar um ‘causo’, afirma com muita ênfase: “Viu, mais é verdade mesmo, eu num tinha porquê menti”.

O sol vai subindo no horizonte. Enquanto isso a fila continua parada. Outro senhor, de cabelos brancos, vestindo uma calça boca larga, estilo anos 70, e uma camisa social surrada, se aproxima com duas caixas térmicas cheias de salgados. A fila grande e demorada é bom sinal para ele, só pra ele. Chega. Aconchega-se no único banco livre e apóia as caixas. Tira do bolso uma sacola cheia de moedas; outra sacola com guardanapos e ainda outra sacola com o pente e objetos pessoais. Logo as pessoas vão se aproximando. Na medida em que vende os lanches, a R$ 1,30 cada, o cheiro dos quitutes toma conta da fila e todos se curvam para saborear com os olhos, e alguns com a boca. O senhor exibe um sorriso constante, verdade que desfalcado por dois dentes na parte superior, mas mesmo assim constante e alegre.

A fila continua da mesma maneira: estática e sonolenta. Desde que cheguei, há cerca de 40 minutos, andei uns três passos para frente, não mais que isso. A monotonia é quebrada por um rapaz que passa ao lado da fila, de cabeça baixa e com alguém segurando suas mãos. Uma mulher vem apressada logo atrás, falando nervosamente ao celular. Os cochichos começam. Não consigo ouvir nenhum nitidamente. Só noto a expressão da senhora que ainda lê a Folha Universal. Ela fecha o semblante e faz um sinal negativo com a cabeça. Quando o rapaz retorna, dessa vez de frente para os que estão na fila, os olhares de reprovação são ainda maiores. Ele é um presidiário da Casa de Detenção da cidade. Para os que estão na fila, ele é apenas um marginal. Para o 'sistema', ele é apenas mais um número. Os senhores comentam entre si. “Se tivesse um lote pra carpir não tinha feito coisa errada e não taria nessa vida”, justifica um deles com feições orientais e mãos calejadas.

A fila não continua a mesma, agora é alguns metros mais extensa. O senhor dos salgados já não está mais lá. Vendeu todos os lanches que cabiam na caixa e foi até sua casa renovar o estoque. Alguns o aguardam ansiosamente. Já faz mais de uma hora que estou quase que no mesmo lugar, parado e observando toda aquela atmosfera confusa e interessante. Uma senhora conta a história de sua mãe. Ela já esteve lá, acompanhando a mãe, duas vezes, essa é a terceira. Indignada com a situação de demora e descaso, esbraveja e vai até à recepção. Volta de lá vermelha e logo berra: “Dois médicos não vieram hoje, não sabe se vai ser todo mundo atendido”. Os burburinhos crescem. Pessoas começam a chorar. Alguns dizer do dia de serviço perdido e outras do dinheiro gasto com a viagem. Para diminuir a tensão, um senhor fuma um daqueles cigarros de palha. Decido me retirar, afinal, até Ibaiti ainda são 90 quilômetros e algumas curvas. Antes disso fico imaginando como será o fim do dia de cada uma daquelas pessoas. Quem vai conseguir uma consulta de cinco minutos? Quem vai perder a viagem? O pior é ter a certeza de que amanhã aquela fila estará lá novamente, do mesmo jeito ou até maior. A única coisa que muda são as pessoas que a compõem. Porque o serviço público continua deficiente e cada vez pior.

Texto: Afonso Verner
Foto: Latuff (imagem meramente ilustrativa)

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