segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Olhos sonhadores


Milhares de pessoas passam por nossas vidas. Porém, algumas têm o poder de nos marcar, como uma cicatriz interior. Um momento eternizado não em nosso corpo, mas sim em nossa alma.

Francesco tinha a certeza de que conhecera aquela mulher. A imagem da juíza da Vara da Criança e do Adolescente, responsável pelo caminho de dezenas de pequenas criaturas sem uma vida familiar consistente, não lhe era estranha. Drª. Lorenza respondia às perguntas do jornalista com um ar sério. O entrevistador, entretanto, fitava aqueles olhos profundos tentando se lembrar de onde os conheciam.

Vinte e dois anos antes, em uma agitada madrugada de sábado. Era isso! Os olhos sonhadores, lembrou-se. A noite não devia ter sido boa, imaginava ele observando o suporte de algodão doce, ainda cheio, que a menina de 16 anos trazia junto ao braço. No drive-thru de uma rede de lanchonetes, em meio aos pedidos dos amigos, a adolescente chegou e ofereceu seu produto, simples, genuíno, bem diferente dos pequenos sanduíches vendidos a preços exorbitantes pela rede. “O azul tem mais sabor. Eu já experimentei todos, mas agora já enjoei”, revelou a pequena vendedora.

O ainda estudante de jornalismo aceitou um algodão doce. Ou melhor, comprou um algodão doce. E puxou conversa, enquanto seus amigos decidiam se pegavam batatinhas fritas e Coca-cola, junto com o lanche. Ele descobriu que a menina estudava de manhã (tinha repetido de ano três vezes, por isso ainda estava na 7ª série), cuidava dos sobrinhos à tarde e vendia algodão doce à noite. Tripla jornada, que começava quando ela acordava olhando para o suporte do produto enroscado em cima da sua cama. O estudante ficou imaginando como era acordar desta maneira. E como ela enroscava um troço daquele em cima da cama?

Bom, mas ele lembrou-se dela pelo sonho revelado naquela noite: estudar Direito e ser juíza da Vara da Criança e do Adolescente. “Já passei por lá várias vezes”, tentou justificar a garota. Agora estavam ali, frente a frente. A menina sonhadora e o estudante de jornalismo. A juíza e o jornalista. Duas vidas cruzadas há anos atrás, por poucos minutos, sem encontravam novamente. Quanta mudança, física e temporal, marcava os dois. Mas aqueles olhos não enganavam: era a vendedora de algodão doce. Ou melhor, de esperança.

Fim de entrevista. Depois de tantos pensamentos, a sorte do repórter era ter utilizado o gravador para registrar a fala da doutora. Não conseguira se concentrar um instante no que ela dizia. Decidiu que não revelaria nada, naquele momento, sobre a lembrança. Agradeceu a entrevista e voltou para a redação.

No outro dia, um algodão doce azul deixado na sala da juíza fez a confirmação. “Ele também lembrou”, pensou a vendedora de esperança.

Texto: Eduardo Godoy

3 comentários:

luh slaviero disse...

eu tmb escrevi sobre ela...bom texto ;)

Afonso Verner disse...

Belo texto. A jogada cronológica ficou muito interessante e a escrita em terceira pessoa de si mesmo também é um bom chamativo, além da sacada do tempo foi muito boa, no mais parabéns!

Diandra Nunes disse...

- Nada como ser um vendedor de esperanças tbm :), bom texto.
Sinceramente eu espero que ela possa conseguir tudo o que almeja :)